Em 1939 um militar compôs uma canção, que durante anos ficou esquecida numa gaveta, intitulada “Coimbra”.
Em Coimbra, três décadas volvidas (a 17 de Abril de 1969), assistiu-se a um ousado desafio de jovens universitários à mais velha Ditadura da Europa.
Ditadura essa derrubada passados cinco anos (a 25 de Abril de 1974) por um movimento de militares.
Três factos muito diversos, mas relacionados – como passo a explicar.
Raúl Ferrão abraçou a carreira militar com apenas 17 anos (em 1907), licenciou-se em Engenharia Química, combateu em África na I Guerra Mundial. Mas o seu nome ficou ligado, sobretudo, à música. Foi um dos mais prolíficos compositores portugueses e entre as muitas dezenas de canções de sua autoria, “Coimbra” é a mais famosa. Só viria a pública em 1947, no filme “Capas Negras”, com letra de José Galhardo e interpretada por Alberto Ribeiro. Contudo, foi em 1952 que conquistou o País e o Mundo, quando Amália Rodrigues começou a cantá-la com a designação de “Abril em Portugal”.
Ora foi num mês de Abril, em 1969, que a velha Ditadura salazarista (então já liderada por Marcelo Caetano) enfrentou a maior das suas afrontas, exactamente em Coimbra e na Universidade que “deu” Salazar ao País. Foi no dia 17 desse mês, quando centenas de estudantes ousaram manifestar-se contra o regime durante a cerimónia em que o então Presidente da República, Américo Tomás, presidiu à inauguração do Departamento de Matemática. Nunca alguém se atrevera a criticar assim, face a face, “o venerando Chefe de Estado” (tratamento dado ao velho almirante).
Um atrevimento que foi severamente punido, com dezenas de dirigentes estudantis a serem presos pela polícia política, impedidos de prosseguir os seus estudos e, em vez disso, coercivamente incorporados no Exército e espalhados por diversos quartéis de todo o País, antes de serem enviados para a Guerra Colonial.
Com isso, mais do que “um tiro no pé”, o regime atingiu-se a si próprio com uma “rajada de politização” nas Forças Armadas que lhes serviam de esteio. De facto, os jovens dirigentes estudantis disseminados pelos quartéis, estavam, na sua maioria, ligados a grupos oposicionistas clandestinos, tendo, por isso, formação e informação política com que foram “contaminando” os militares do quadro.
Esse trabalho de sensibilização e de esclarecimento viria contribuir para o chamado “Movimento dos Capitães” que, cinco anos volvidos, também em Abril, teve a coragem de, arriscando o futuro e a própria vida, pôr em marcha “a Revolução dos Cravos”. Por ironia, essa Revolução derrubou um regime implantado também por um golpe militar, em 1926, que à Universidade de Coimbra fora buscar Salazar, dando origem ao auto-intitulado Estado Novo e que viria a ser a mais velha Ditadura da Europa, inspirada no nazi-fascismo alemão, com réplicas assumidas – como, por exemplo, a Mocidade Portuguesa, que era uma cópia da Juventude Hitleriana, ou a Legião Portuguesa. Mas também a proibição dos partidos políticos, a violenta polícia política (que teve várias designações, mas ficou conhecida como PIDE), que se infiltrava em todos os sectores da sociedade, prendendo quem se atrevesse a fazer qualquer crítica, expulsando das Universidades alguns dos seus mais brilhantes professores, torturando milhares de oposicionistas que passaram pelas suas prisões; chegando mesmo a assassinar políticos incómodos (como sucedeu com o general Humberto Delgado).
Só quem viveu esses tempos pode avaliar, de forma objectiva, as extraordinárias mudanças que se operaram no nosso País, até então “orgulhosamente só” (como Salazar gostava de referir), com um povo oprimido e mergulhado na miséria, na ignorância, na privação dos mais elementares direitos, liberdades e garantias, enlutado pela morte de milhares dos seus jovens obrigados a combater nas três frentes (Angola, Moçambique e Guiné) de uma Guerra Colonial que se prolongou por 13 anos.
Hoje continua a haver algumas injustiças e desigualdades.
Mas não há gente descalça, andrajosa e esfomeada pelas ruas das cidades e vilas e pelos caminhos enlameados das aldeias. Não há o fantasma da guerra que pesou sobre todos os jovens portugueses e suas famílias durante tantos anos. Não há o analfabetismo e o trabalho quase escravo. E tantos outros aspectos que os mais jovens desconhecem e grande parte dos mais velhos já esqueceu…
Em contrapartida há um bem supremo, a que só se dá o justo valor quando ele não existe.
É aquele que me consente dizer o que penso e me permite escrever, neste texto, o que sinto.
Chama-se liberdade!
E deve-se ao Abril em Portugal – desencadeado por uma outra canção (“Grândola, vila morena”) da autoria de Zeca Afonso, um dos mais marcantes vultos da música portuguesa e antigo estudante de Coimbra…