Humanos, natureza e tecnologia

A cidade do futuro terá de ser a soma equilibrada destes três vectores

“Não há um planeta adaptado à globalização”, diz-nos Bruno Latour, filósofo, antropólogo e sociólogo francês que recentemente perdemos, com apenas 75 anos, no seu livro “Down to Earth: Politics in the New Climatic Regime”, de 2018. Latour foi um dos mais reconhecidos e influentes pensadores contemporâneos, com um trabalho de enorme relevância sobre a relação entre a Humanidade e o planeta Terra e, especificamente, sobre a forma como é percepcionada a emergência climática. Com um espírito criativo mas também analítico e seguramente surpreende, põe ênfase no facto de que a separação existente entre a cultura, entre aquilo que é produzido pelo ser humano, e a natureza provoca uma impossibilidade real no entendimento das questões climáticas. Há, em nós, uma iliteracia ecológica profunda, de raiz cultural, que é difícil de fazer desaparecer.

Latour põe o dedo na ferida. Enquanto espécie dominante temos de facto uma incapacidade colectiva de compreender a noção de ecossistema. E, na sua lucidez, dá-nos pistas claras sobre aquilo que deveria ser feito e sobre o que podemos evitar fazer em relação a estes temas, poupando recursos e tempo. No livro “Facing Gaia”, onde reúne oito palestras suas, este autor apresenta o que, na sua óptica, podem ser as bases para uma futura colaboração entre cientistas, teólogos, activistas e artistas, à medida que todos nós nos começamos a ajustar a um novo regime climático, disruptivo e de carácter catastrófico. O que é de enorme importância em Latour é o seu interesse em provocar uma maior colaboração e dinâmica entre cultura e ciência no sentido de nos tornar a nós, humanos, mais capazes de evoluir nesta relação primordial com o planeta que habitamos, num entendimento profundo sobre a natureza.

Ora é aqui que as cidades são peças-chaves. Queiramos ou não, é nelas, é através delas que a mais expressiva coabitação do ser humano com o seu planeta tem lugar. É nelas que este exercício de combinação entre tecnologia, cultura e natureza pode acontecer. E se durante muitos séculos a criação de uma cidade parecia implicar, de forma consistente, a eliminação da natureza, submergida pela construção e pela adição de tecnologia, hoje em dia, decisores políticos, designers, arquitectos e cidadãos, no seu todo, sabem mais. Sabem que a cidade do futuro terá de ser a soma equilibrada destes três vectores.

“Se eu pudesse mudar uma coisa, seria sair do sistema de produção e construir uma ecologia política”, propõe Latour. Ao que se pode acrescentar, construir uma ecoliteracia colectiva, em que a plataforma estrutural é a cidade.

Guta Moura Guedes – in Expresso, 13/01/2023

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