As Persianas

É preciso ver a rua, o que lá acontece, quem sobe e desce, as pessoas que entram nas casas atrás das árvores. As copas são amplas e derramam as sombras na calçada. Fora de horas, os passos ecoam nas paredes, ouvem-se os saltos, consigo imaginar a porta onde se silenciam.  Depois das dez, as persianas descem, é esse o momento que separa verdadeiramente o dia e a noite. No Verão há quem deixe as janelas abertas, nos andares superiores, para arejar a casa. Os gatos adormecem no parapeito, equilibram-se numa nesga de espaço, são a companhia contra alguma solidão. Nos prédios mais antigos, vivem muitos idosos, pessoas que sempre moraram ali, onde os filhos cresceram, até ficarem sozinhas.

Cada janela conta uma história. Quando a rua tinha muitas crianças, as mães e as avós vigiavam a criançada das janelas e das varandas. Agora estão sós, os filhos são pais e os netos brincam noutros lugares. O abandono dos prédios é uma dolorosa realidade. Nos quintais a erva invade as portas de entrada. Ainda há limoeiros e outras árvores que continuam indiferentes às vozes de outrora. Num dos prédios, o cão morreu primeiro que o dono; com as chuvas, as ervas tomaram altura e as paredes ficaram sujas. O tempo gastou a vida. O que dói é não poder parar o tempo: ficar com as crianças, as avós, os animais e os sons da brisa nascente que, ainda, trazem os cheiros das hortas.

Quando as persianas descem, escondem-se os cabelos brancos, as memórias e as perdas. Calam-se as conversas entre as vizinhas. As sombras ocupam os espaços interiores; as fotografias, nos móveis, perpetuam o passado. A noite instala-se onde outrora se escutava a respiração dos corpos. Não é o fim do mundo, mas um retrato do mundo que já existiu e, talvez, o seu recomeço noutro lugar.

Rua acima, os prédios do Estado Novo impõem-se pelas fachadas austeras, são construções sólidas, com garagens exteriores e amplos espaços na retaguarda. Eram casas destinadas aos altos funcionários do Estado, muitos já falecidos. Os herdeiros descaracterizaram o bairro, arrendaram os apartamentos – todos os anos chegam novos inquilinos, a maioria estudantes. Ainda há quem se sente nas soleiras das portas, ao final da tarde, para tagarelar com as vizinhas que chegam devagarinho. Algumas vêm de avental e chinelos de quarto; sem pressa, encostam-se ao muro, desenrolam a língua até o vento encanar. É um ritual que ainda pode durar alguns anos. Ali, ainda, permanecem as recordações de ilustres figuras, que atravessavam a rua: Miguel Torga e Rui de Alarcão.

Quase tudo fica à distância de quinze minutos a pé: o hospital, os centros comerciais e de saúde, a maternidade, a biblioteca e escolas públicas, a Faculdade de Economia e o Jardim da Sereia. Talvez, por isso, alguns estrangeiros tenham feito significativos investimentos. A rua está a mudar muito depressa.

Onde havia velhas casas térreas, erguem-se prédios. Há um renascimento acelerado, à medida que os velhos inquilinos morrem.  Nos postes resistem papéis das funerárias com os nomes dos que faleceram.

Alguns estão esmaecidos, mas a fotografia permanece a lembrar-nos que viveram ali e eram vizinhos. A transformação urbanística há-de ser mais visível quando um velho edifício for transformado numa residência universitária. As muitas casas que já foram felizes ostentam os traços da arquitectura como representação de poder e de riqueza.

Um misto de tristeza atravessa os nossos olhos, é, talvez, a angústia da finitude que acicata o existencialismo. Sabemos que nada é eterno, que “todo o mundo é composto de mudança”, mas resistimos a pensar nisso, quando a dor e a metáfora de uma persiana que se fecha para sempre.

António Vilhena, Escritor, in Diário de Coimbra (27/07/2023)

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