Obra de arte total? Não, arquitecturofobia

Há cerca de dois séculos atrás, o Romantismo alemão criou o conceito de gesamkunstwerk, que tem sido comumente traduzido por obra de arte total.

Desde então para cá, muitas e muito variadas têm sido as tentativas de alcançar esse desígnio de criar o objecto artístico perfeito, que harmonize e conjugue todas as artes. A ópera, por exemplo, foi apenas uma aproximação, mas houve outras, algumas delas heroicas.

Ao longo do século passado, o Movimento Moderno, foi tentando, por diversas formas, aplicar o conceito. No que diz respeito à Arquitectura desenvolveu-se a possibilidade de integrar artistas plásticos, escultores e pintores, no processo de produção dos edifícios e dos espaços públicos. A intenção pressupunha sempre um método de concepção conjunta, na qual cada um dos intervenientes agia em estrito respeito e cumplicidade pela obra de cada um dos outros. Em Portugal, vários exemplos deste modelo interventivo se foram desenvolvendo, uns mais bem conseguidos, outros nem tanto. Em relação aos primeiros, vale por todas a magnífica obra das instalações da Associação Académica de Coimbra (1954-61), tão mal tratada nos dias que correm. Alberto José Pessoa (arquitectura e painéis cerâmicos) e Manuel Cerveira (jardins) trabalharam sempre em conjunto, assumindo cada um deles a sua parte da obra em estrita cumplicidade com os outros. Em relação aos segundos, mais mal conseguidos, podem ser referidas as estátuas dos prédios de rendimento lisboetas da década de 1950, as meninas entaladas, como as designava Keil do Amaral, por se tratar, na maior parte dos casos, de figuras femininas que eram literalmente metidas à pressão, entaladas entre a padieira da porta de acesso e as varandas do primeiro andar.

Vem isto a propósito da situação contemporânea. Hoje, um pouco por todo o lado, as fachadas de alguns edifícios de qualidade são usadas e abusadas, não como obra de arte integrada, mas como suporte para as artes visuais.

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As ditas “obras de arte”, algumas delas gigantescos painéis publicitários de qualidade gráfica duvidosa, são indiscriminadamente escarrapachadas na fachada de um qualquer edifício. Não interessa para nada a sua qualidade arquitectónica e urbana, só interessa que seja visível.

Não interessa integrar a arquitectura, interessa só usá-la como suporte – “as telas já não estão na moda, vamos aqui aprantar este objecto que assim toda a gente o vê, quer queira, quer não queira”.

Não interessa conjugar as artes, interessa tão só anular e amesquinhar uma delas, para salientar a outra.

Mesmo que fossem obras de arte, e a maior parte das vezes não o são, fazem um uso licencioso da arquitectura pública para propósitos de divulgação, ou de satisfação, privados.

Do modo intenso como tem vindo a ser disseminado por todas as cidades, quer seja com propósitos alegadamente culturais, quer inconfessadamente comerciais, quer seja pelos pichadores marginais, quer pelas mais respeitadas instituições, o uso da fachada de edifícios qualificados como mero suporte para comunicação visual, sem tentar sequer tentar perceber o seu significado artístico, corresponde a uma espécie de “arquitecturofobia”, corresponde a algo que, por despeito ou mesmo por inveja, tenta anular a mais pública das artes.

Quem fica a perder é a coisa pública por excelência, a cidade, claro.

José António Bandeirinha – Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, in Diário As Beiras (28/09/2022)

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