Reconversão de imóveis virou “moda” em muitos países, para combater a falta de oferta. Especialistas analisam fenómeno em Portugal.
Portugal vive a braços com um forte problema a nível da habitação, devido à alta falta de oferta para a procura, acompanhada de elevados preços das casas, num momento de quebra de poder de compra, escalada da inflação e subida de juros. Para tentar dar resposta a este desafio, o mercado tem vindo a desenvolver soluções. E converter imóveis afetos a serviços/comércio em habitações é uma delas.
Inspirados noutros países, onde a transformação de lojas, armazéns e escritórios em casas virou “moda” – nomeadamente para combater o problema de stock no mercado residencial –, os players a operar em Portugal têm seguido o exemplo.
Ainda assim, o processo pode ser complexo, e comporta riscos (além de vantagens). Com este contexto como pano de fundo, será que a “residencialização” deste tipo de imóveis já é uma prática comum/tendência em Portugal e que pode vingar? Para se compreender melhor o tema foram ouvidos vários profissionais do imobiliário de diferentes segmentos, em vésperas de se conhecer a nova Lei da Habitação com que o Governo promete vir a gerar mais habitação acessível.
-Tendência em Portugal? Sim ou não?
-Mudança da afetação dos imóveis: processo possível, mas demorado
-Uma solução para a falta de habitação?
-Oferta de imóveis com potencial de reconversão
-Converter imóveis comerciais em casas: prós e contras
-Antes e depois: a conversão de um escritório em habitação
A mudança de usos voltou efetivamente a estar na ordem do dia, nos últimos anos, e segundo os especialistas são vários os fatores que explicam o seu renascimento.
-há um grave problema de stock no mercado residencial nacional, com pouca oferta para tanta procura, os preços da habitação não param de subir e a compra deste tipo de imóveis sai, à partida, mais barata;
-cada vez mais lojas e armazéns ficam mais vazios devido à ascensão do comércio eletrónico;
-no caso dos escritórios, verifica-se um cenário semelhante, uma vez que hoje em dia se procuram espaços cada vez maiores, além de muitos terem ficados desocupados depois da pandemia, devido ao teletrabalho ou a um modelo híbrido.
Tendência em Portugal? Sim ou não?
De acordo com alguns agentes do mercado, a reconversão de imóveis comerciais em habitação é já uma realidade em Portugal.
Gonçalo Santos, Head of Capital Markets JLL Portugal esclarece que “a grande onda de investimento em reabilitação urbana vivida nos últimos 10 anos teve como um dos seus pilares a reconversão de edifícios de escritórios de menor dimensão para projetos residenciais”, principalmente para os segmentos médio-alto e alto, “onde os valores de venda das futuras unidades se posicionam bem acima do valor das unidades de escritórios, mesmo descontando o investimento necessário para a reconversão”.
De acordo com este especialista, também os novos requisitos de ocupação de escritórios, “espaços mais modernos, plantas maiores e em open space e os novos requisitos de sustentabilidade”, fazem com que as duas tendências se conjuguem atualmente. “A desocupação de edifícios fragmentados, e desalinhados com os requisitos da procura atual, no centro da cidade abre cada vez mais espaço a usos alternativos, como o residencial”, argumenta.
Mariana Represas, Senior Consultant de Capital Markets da Savills Portugal, partilha da mesma visão. A reconversão de imóveis de serviços em imóveis residenciais, segundo defende, “tem sido a base das novas promoções nos centros urbanos”. Exemplo disso, refere, “são os mais de 100.000 m2 de escritórios que estimamos que tenham sido convertidos em usos alternativos, maioritariamente para habitação e hotelaria”.
Para Alfredo Valente, “dizer-se que se trata de uma tendência pode pecar por exagero”, contudo, confirma que é uma realidade “observada com frequência”. Um cenário também apontado por João Carvalho, cofundador da MELOM. Segundo conta o responsável, esta “moda” está ainda “pouco enraizada em Portugal”, embora seja já uma prática comum em vários países europeus. Por sua vez, Mariana Morgado Pedroso, da Architect Your Home (AYH), relembra que a “mudança da afetação de um imóvel nem sempre é possível em muitas cidades, devido a regras dos planos diretores municipais (PDM) locais”.
Mudança da afetação dos imóveis: processo possível, mas demorado
Para que um imóvel possa ser legalmente utilizado para fins habitacionais – seja para habitação própria, arrendamento de longa duração ou alojamento local – terá que haver lugar a um processo destinado a alterar a licença de habitação do mesmo.
João Carvalho lembra que “o pedido de licença de utilização para habitação tem de ser efetuado junto das câmaras municipais, entidades que devem decidir sobre a autorização para transformar um imóvel de serviços ou comercial em casa de habitação”. Além disso, ressalva, “a demora do processo vai depender da forma como cada autarquia funciona e das próprias particularidades da reconversão. Será necessário, por exemplo, avaliar se o imóvel reúne as condições legais exigidas para cumprir a finalidade de habitação e se as alterações não desvirtuam o projeto de arquitetura. No caso dos espaços inseridos em prédios será também necessária a autorização unânime dos condóminos”.
“Às autarquias cabe garantir a idoneidade do edifício ou da fração para o uso pretendido e por conseguinte assegurar o cumprimento da lei.
Não temos ideia de que sejam colocados entraves, mas existe sempre alguma discricionariedade na decisão, até porque irá ser considerado o Plano Diretor Municipal”, acrescenta Alfredo Valente. Gonçalo Santos frisa, além disso, que no contexto atual de grande atraso nos licenciamentos urbanísticos, “este primeiro passo no processo pode demorar pelo menos um ano nas principais cidades”.
“O tempo para mudar a afetação de um imóvel é o mesmo de um projeto de licenciamento, na realidade pode demorar entre 4 a 8 meses. Considero que terão que ser feitas alterações ao imóvel – normalmente teremos que considerar introduzir cozinha, mais I.S, etc. o que significa que será analisado como qualquer outro projeto de alterações, podendo mesmo demorar mais tempo se houver muitas interações com a Câmara”, explica ainda a arquiteta Mariana Morgado Pedroso.
Este é também “um tema complicado” no que diz respeito às questões de financiamento, na opinião de Miguel Cabrita. Segundo o especialista, “existem muitas transformações de espaços comercias em habitação de forma ilegal, até porque as autorizações das câmaras demoram bastante, principalmente nas grandes cidades”. “A principal preocupação dos municípios é não retirar vida aos bairros, vida essa que é bastante promovida pelo comércio local. Em consequência, os bancos não estão disponíveis a financiar com os mesmos critérios do crédito habitação. É possível encontrar financiamento, mas com outras condições, a não ser que esteja tudo em conformidade para alteração de uso junto da câmara municipal”, acrescenta.
Uma solução para a falta de habitação?
A transformação de imóveis do setor terciário em habitação pode ser tentadora devido ao preço e à falta de oferta. Mas será efetivamente uma alternativa? Para Gonçalo Santos, esta “pode bem ser uma das soluções para aumentar a oferta no parque habitacional”. Contudo, refere, e “dada a discrepância entre o volume de procura e a oferta atual, esta medida é manifestamente insuficiente, pois os m2 de escritórios passíveis de conversão em residencial não têm a necessária escala, se não for complementada por medidas adicionais, nomeadamente de incentivo à promoção de construção nova para os segmentos mais carenciados da população, como a classe média ou media-baixa”.
“A concentração de ativos comerciais existe nos centros urbanos e, no presente contexto, devido a uma excelente performance ocupacional temos verificado um aumento de rendas, com particular impacto no segmento de escritórios. Por outro lado, no caso da performance residencial, estima-se que venha a ser afetada pela inflação e subida das taxas de juro, excetuando nos segmentos mais altos. Desta forma, considerando o aumento dos custos de construção, os retornos obtidos nestas conversões poderão não ser tão vantajosas quanto no passado”, acrescenta Mariana Represas.
Mariana Morgado Pedroso não acredita que esta seja a solução ideal, uma vez que, na verdade, diz, “também existe falta de oferta de ativos de serviços (escritórios) no mercado”. Lembra ainda que os ativos que existam vazios “por norma não são muito apelativos para o público em geral”. “Estamos a falar de lojas, armazéns ou qualquer tipo de uso serviço/comércio ao nível do piso 0 e com uma frente ou duas de rua. Nem todas as pessoas gostam de converter esse tipo de unidade para residencial. Num edifício que seja integralmente de escritórios não será fácil obter autorização para a alteração da afetação, pelo que desconsiderava essa hipótese. Existem, contudo, vários edifícios mistos onde será sim fácil potenciar a alteração e nesse caso creio que existe elevado potencial de reconversão”, explica a arquiteta.
Para João Carvalho, esta pode ser uma forma de impulsionar uma maior oferta habitacional nos centros urbanos, onde os preços são mais elevados, “permitindo trazer os mais jovens para o coração da cidade e dando nova vida a áreas desertificadas, por exemplo, com a reconversão de lojas em pequenos apartamentos”. Alfredo Valente considera que “dificilmente veremos aqui a solução para o problema da habitação nas nossas cidades”, mas acredita que permitirá “reabilitar alguns espaços outrora com utilização comercial ou industrial, nomeadamente para residências universitárias, por exemplo”.
Oferta de imóveis com potencial de reconversão
Segundo os especialistas ouvidos, há vários imóveis com potencial de reconversão – ativos comerciais vazios, por exemplo – no entanto, lembra Alfredo Valente, são, em muitos casos, “intervenções exigentes e que requerem intervenção também no espaço público, obrigando à participação ativa das câmaras municipais, o que nem sempre é fácil de gerir”.
Além de lojas e escritórios, João Carvalho dá o exemplo de armazéns, “espaços com grande potencial de reconversão, permitindo pensar toda a casa de forma criativa, com uma arquitetura que dinamiza de forma personalizada os openspace, permitindo usar a imaginação na decoração de interiores por exemplo com inspiração industrial”.
A grande procura, diz Gonçalo Santos, está nos edifícios completos, “porque permite uma reabilitação integral do edifício e redesenhar toda a sua planta para cumprir com a legislação aplicável e acomodar as novas exigências do comprador final”. Pela Grande Lisboa há, de resto, vários exemplos deste tipo de projetos, “como o antigo edifício do Diário de Notícias (transformado em habitação), os dois edifícios da CUF na zona da Infante Santo, alguns dos ex-edifícios do Novo Banco em Lisboa, como Álvares Cabral 27, 41 ou Av .5 de Outubro 164”, refere.
De acordo com os profissionais, há muito interesse neste tipo de projetos, tanto de promotores nacionais, como internacionais, que compram os espaços e fazem obras com o objetivo de os voltar a colocar no mercado.
Converter imóveis comerciais em casas: prós e contras
Há vantagens e desvantagens na reconversão de imóveis de comércio e serviços para habitação, como em qualquer outro tipo de negócio imobiliário. Eis um resumo dos principais pontos referidos pelos profissionais:
Vantagens
-Vantagens associadas à especificidade e características únicas dos edifícios, resultando em peças de elevado valor estético e invulgares;
-Liquidez do mercado residencial. Desequilíbrio estrutural entre procura e oferta no mercado residencial continua a sentir-se, o que garante um escoamento relativamente rápido dos projetos;
-Preço mais baixo do que os imóveis para habitação, e o facto de ser possível reconverter o espaço à medida do comprador e de acordo com o seu gosto, para além de aumentar também as alternativas de oferta habitacional no mercado imobiliário;
-Em teoria, adquirir imóveis existentes poderá permitir reduzir o custo e o tempo da promoção imobiliária;
-Oferta de um produto diferenciado, com características especiais (vãos maiores, amplitude nas áreas) e com potencial de um look mais contemporâneo;
-Vantagem para as cidades é a adoção de uma estratégia que permitirá a reabilitação do edificado não ocupado, como por exemplo em zonas que ainda estão em fase de consolidação.
Desvantagens
-Riscos normalmente associados a entraves burocráticos, por um lado, e a maior incerteza relativamente ao custo final da reconversão;
-Desafios próprios de uma reabilitação de um edifício existente tendo em vista a mudança do seu uso: custos de construção mais altos e com elevada volatilidade, bem como a morosidade no licenciamento, o que se faz sentir mais nos grandes centros urbanos;
-Não existir garantia de que o espaço vai ser afeto à habitação. Sem a licença de habitação o imóvel não pode ser arrendado e a sua venda torna-se mais difícil;
-Custos de adaptação das redes e criação de infraestruturas adequadas à habitação.
Antes e depois: a conversão de um escritório em habitação
Num edifício emblemático dos anos 50, já readaptado a escritórios, a Architect Your Home (AYH) recuperou o uso original de habitação “para uma família com gostos contemporâneos”. Os materiais utilizados são de tons claros, as linhas modernas e tudo foi feito à medida para que a funcionalidade esteja a par da estética. O projeto foi construído em 2017 e fica localizado na Avenida de Roma, em Lisboa. Eis algumas imagens da transformação: